DEMOCRACIA
E REPRESSÃO NA FRONTEIRA: AS LUTAS OPERÁRIAS NO PÓS-ESTADO NOVO
* Marlon Aseff
O
final do período histórico conhecido como Estado Novo (1937-1945) e a transição
para a democracia, com a promulgação da nova constituição em 1946, é marcado em
Santana do Livramento por uma renovada correlação de forças políticas e a
entrada de novos atores em cena. A redemocratização, com a retomada das
atividades na Câmara de Vereadores e novas eleições para o Palácio Moysés
Vianna, seria assinalada pela breve legalidade do Partido Comunista Brasileiro
(PCB) e uma disputa política crescente, até os conflitos que marcariam momentos
de crise na década de 1950 e o período seguinte, em que a instabilidade
política iria desaguar no golpe civil-militar de 1964.
Em
um recorte nacional, esse momento marca uma quadra em que os trabalhadores
viviam as agruras da inflação, com o aumento no custo de vida somado a uma
experiência que remetia ainda às medidas de exceção impostas pelo Estado de
Guerra, com suas características de disciplinarização e controle social.[1]
Na fronteira a disputa por novas legitimidades políticas tinha sua centralidade
ligada as demandas dos trabalhadores reunidos em torno Frigorífico Armour, que já
por quase três décadas se consolidava como o grande motor econômico da região.
Situado
às margens do arroio Rincão da Carolina, distante cerca de dez quilômetros do
centro da cidade, o frigorífico norte-americano foi erguido a partir de 1917 onde
antes funcionava a Charqueada Livramento, levando pelo menos três anos para se
estruturar nos moldes de uma produtividade similar às demais fábricas
congêneres no Prata. O impacto que a implantação do frigorífico causou entre os
fronteiriços naquele início de século superou o mero fator econômico,
ampliando-se aos padrões de construção das casas de gerentes e altos funcionários
até minúcias de hábitos alimentares e de lazer.
O
frigorífico consolidava naquele momento a força econômica dos grandes
mandatários, que se mantinham muitas vezes à margem de um ordenamento jurídico
que propusesse um papel tutelar do Estado sobre a sociedade. De acordo com o
historiador Carlos Rangel, essa permeabilidade de fronteira a constante
transgressão das normas fiscais originou uma forma de vida à margem de um
projeto de desenvolvimento nacional. Acrescente-se
a isso um conservadorismo provinciano, com forte acento rural, que mantinha
depois da revolução de 1930 as mesmas estruturas políticas e administrativas
herdadas da república velha. O patronato político local de Santana do
Livramento, representado pela família Flores da Cunha desde 1910, tornava o
município um reduto do situacionismo republicano. José Antônio Flores da Cunha,
que seria interventor e governador do Rio Grande do Sul, ganhou notoriedade
combatendo os revolucionários de 1923, com o apoio do caudilho uruguaio
Nepomuceno Saraiva. Seu irmão, o coronel Francisco Flores da Cunha, conhecido
como Chico Flores, governou Santana do Livramento de 1924 a 1928, foi
presidente do poderoso Sindicato dos Charqueadores, cogitado a ocupar o Ministério
da Justiça em 1932 e eleito senador em 1935. Na fronteira, seguiam o modelo
político vigente no Rio Grande durante a República Velha, onde o coronel fazia
a política e suplementava a administração pública no âmbito municipal, numa
troca de proveitos com o governo estadual.[2]
Nesse cenário de desalinhos, inseria-se o frigorífico como aliado natural do
chefe político Chico Flores, detentor das práticas “oficiais” do contrabando na
região. O advento dos grandes latifúndios e a pecuária extensiva, pouco exigente
com a qualificação de mão de obra, seria oriunda da distribuição inicial de
terras em sesmarias e uma concentração urbana resultante de um “capitalismo
dependente, num nível externo, e segregador, no âmbito da cidade”.[3]
A
partir da década de 1940, com o definhamento do período abertamente repressivo
do Estado Novo, o contraponto ao poder dos grandes chefes e detentores do
capital no município iria crescer também dentro do frigorífico. Na linha de
frente, os adeptos do ideal comunista, reunidos em torno do pedreiro e
sindicalista Santos Soares, e posteriormente ligados às lideranças que atuavam
diretamente no chão de fábrica, como Amaro Gusmão, e também a um grupo
heterogêneo que reunia nas fileiras formais ou informais do PCB, desde
trabalhadores a pequenos pecuaristas e advogados.
Com a volta a legalidade no final de 1945,
o PCB passa por um gradual processo de reestruturação em Santana do Livramento,
que iria culminar no ano seguinte. Santos Soares comandava desde a década
anterior um grupo coeso na proposta de consolidação de uma maior consciência de
classe entre os trabalhadores fronteiriços. No âmbito nacional, com a deposição
de Vargas e as candidaturas de Eduardo Gomes, Eurico Gaspar Dutra e Yedo Fiuza
colocadas à rua, o campo de disputa pelos votos dos trabalhadores alinhava-se
entre os recém-criados partidos políticos. Mais afinados ao que restava da
antiga situação estado novista, o PSD (Partido Social Democrático) reunia
políticos e burocratas ligados ao antigo regime. O segundo grupo de
situacionistas, também alinhados na legenda, seriam os grandes proprietários de
terras e industriais. Esse quadro completava-se com parte dos trabalhadores
urbanos, que brandiam a legislação trabalhista e a organização sindical, mesmo
que paternalista e controlada pelo estado, alinhados ao PTB (Partido
Trabalhista Brasileiro), também idealizado pelo ex-ditador. Entre as lideranças
da nova sigla, destacava-se o Ministro do Trabalho, Alexandre Marcondes Filho,
responsável pela consolidação das leis destinadas ao amparo dos trabalhadores,
com a criação de uma “mística trabalhista” e o gaúcho Alberto Pasqualini, que
viria a ser um ideólogo do partido.
A oposição, reunida em torno da UDN (União
Democrática Nacional), imbuía-se desde o início no estímulo indisfarçado ao
Exército, para efetivar a deposição de Vargas, consolidada finalmente em 29 de
outubro. A manobra previa aniquilar os desejos “queremistas”, que pediam a
“constituinte com Getúlio” conferindo nova coloração a eleição presidencial,
unindo trabalhistas e comunistas em uma causa comum. Os udenistas propagavam um
princípio liberal que previa o desentrave burocrático para o livre fluxo de
capital, controle mais brando aos investidores externos e o incentivo às
exportações, entretanto, não se contrapunham a estrutura corporativa estatal,
especialmente ao sistema de sindicatos manipulados pelo governo, herança de
Vargas. Como podemos confirmar nas recorrentes notas publicadas no jornal
liberal santanense O Republicano,
também pesavam para os udenistas locais os constantes entraves que o governo
impunha, dificultando as exportações do frigorífico, uma queixa que iria
persistir mesmo após o manto liberalizante do governo Dutra.[4]
No plano nacional, o PCB experimentaria a
euforia de um desempenho sem precedentes, com a eleição de Luís Carlos Prestes
para o Senado e outros 14 deputados para a Constituinte de 1946, além da
performance excepcional do candidato da legenda a presidência, Yedo Fiúza, que
obtivera 10% do total de votos. O crescimento vertiginoso da sigla iria
culminar em 1947, ano em que voltaria a ilegalidade, com cerca de 200 mil
filiados em todo o país.[5]
Em Santana do Livramento, o taxista Jorge Alves Ferrão vivia a adolescência no
bairro do Prado, um local então bastante afastado do centro da cidade, ligado a
serviços rurais e pequenos comércios. Ainda muito jovem, com 15 anos
incompletos, somou-se aos comunistas. Reuniu “perto de 30 guris”, como ele, e
fundou uma Ala Jovem.
Nos finais de semana, especialmente, o
grupo comunista partia em missões pelas zonas rurais e bairros da periferia,
com o intuito de arrebanhar mais gente para a luta social e esclarecer o
proletariado fronteiriço das injustiças vigentes. Os trabalhadores do campo, de
fato, só viriam a conhecer as benesses da CLT em 1962, com a legalização dos
sindicatos rurais e a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural. Ferrão
recorda dos anos de militância e os nomes mais recorrentes das incursões
comunistas pelo município:
Naquele tempo o meu tio, José Ferrão,
era concessionário do transporte coletivo aqui, então nos domingos normalmente
nós tínhamos um ônibus para fazer comícios na campanha. Andei muito pela Vigia
e por aí tudo. Tinha um número de tribuno ali que estavam sempre de plantão. Um
deles era o Santos Soares, o Felício Corrêa, uma turma grande, nós conseguíamos
encher um ônibus. O Santos Soares era um homem de um conhecimento bárbaro. O
partido levava a classe dominante por diante aqui, não? O Santos Soares, o
Aladin Rosales, gente muito inteligente, impressionavam no comício. Diziam as
coisas bem direitinho, os problemas da sociedade. A burguesia naquela época
vivia aterrorizada, porque o comício era um atrás do outro, e saía tudo
direitinho pra rua. Foi uma época difícil para a classe dominante, por isso a
repressão toda. Apagar o partido... foi o único jeito. Até ali era brabo para o
lado deles. E foi em várias cidades, em Rio Grande. E depois tinha o Armour,
que tinha o Amaro Gusmão, o presidente do sindicato. E o Pantaleão Corsino, o
vice-presidente. E eles não deixavam os gringos dormir tranquilo, bah... [6]
A repressão aos comunistas na fronteira,
que se acentuaria com a cassação da representatividade parlamentar do partido,
tomava forma como uma resposta ao poder de organização dos trabalhadores, que
tinham entre seus líderes, além de Santos Soares, o advogado Lúcio Soares Neto,
o jornalista Solon Pereira Neto, o sindicalista Amaro Gusmão, entre outros
batalhadores da causa operária. Em 1946, com a legalidade à pleno, o grupo
passaria a participar ativamente do debate político local, ainda sob o manto da
colaboração de classes e com os setores progressistas da burguesia, como
preconizava a diretriz do partido desde 1943, e que tinha naquele momento um
aliado em Vargas.[7]
Com
a redemocratização e o restabelecimento da liberdade política, a reorganização
dos partidos e a retomada das eleições diretas para os cargos executivos e
legislativos, voltavam à cena os anseios dos trabalhadores como peça chave
nessa nova configuração do jogo político municipal. Na Câmara de Vereadores, a
disputa por um espaço nos corações e mentes operárias dava-se através do embate
entre as matizes ideológicas em jogo. O advogado Lúcio Soares Neto, reconhecido
por sua atuação junto aos trabalhadores, muitos deles ligados ao frigorífico,
seria o suplente do líder operário Amaro Gusmão, ambos ligados ao grupo
comunista, eleitos pelo PSP. Juntos, dividiam a interlocução direta com o
sindicato dos tripeiros – os trabalhadores do frigorífico. Mais tarde, o
jornalista Solon Pereira Neto, eleito pelo PSD, também iria perfilar-se às
ideias comunistas, quando se dá a radicalização em torno das demandas operárias
em oposição aos interesses do frigorífico e grandes proprietários rurais. Nas
eleições de 15 de novembro de 1947, o PSD obteve a maioria parlamentar, com
sete vereadores eleitos, seguido pelo PTB (3), UDN (2), PSP (1) e PL (1). Foram
eleitos Miguel Alves Medina (PSD), Solon Pereira Neto (PSD), Ottoni Cademartori
(PSD), Concesso Cassales (PSD), Juracy Pinheiro Ribeiro (PSD), Antônio Iruleguy
(PSD), Victorino Soares Pinto (PSD), Nery Ucha (PTB), Atalício Machado Soares
(PTB), Moysés dos Santos Rodrigues (PTB), Romagueira de Oliveira (UDN), Antônio
Joaquim Andrade de Oliveira (UDN), Aldrovando Sant’Anna (PL), Amaro Gusmão
(PSP). Na Prefeitura Municipal, o PSD elegeria Silvio Cademartori, prefeito, e
Flávio Mena Barreto, vice.
Luta
pela terra
No
final de dezembro de 1947, Lúcio Soares Neto elencava aos colegas de tribuna as
dificuldades por que passavam os trabalhadores que viviam no bairro industrial,
solicitando que seus pares encaminhassem à Assembleia Legislativa do Estado as
demandas necessárias para que fosse iniciado um processo de aquisição da
chamada “Fazenda Armour”, uma grande extensão de terras onde o frigorífico
possuía participação, para que fossem loteadas entre os operários, e
especialmente entre a população local, desassistida nos períodos de
entressafra, onde se tornava quase insustentável a sobrevivência econômica de
centenas de trabalhadores.
Conforme
o vereador, as terras deveriam ser “repartidas em colônias e chácaras e
distribuídas aos agricultores sem-terra e operários especializados na indústria
do frio, carnes e derivados, atualmente em angustiosa situação econômica devido
a safra seca e aqueles ameaçados de despejo, ou que pagam arrendamentos
elevados, vivendo uma vida intranquila”.[8]
A luta dos camponeses estabelecidos na extensão de 1.740 hectares, muitos
vivendo há mais de 20 anos naquelas terras, junto aos operários que ali
buscavam a sobrevivência ocasional em períodos de entressafra, foi parcialmente
vitoriosa. Após intensos debates, o local foi adquirido pela secretaria
estadual de Agricultura e destinado a uma distribuição posterior aos posseiros.
O débito da vitória política ficaria marcado na ficha corrida de Lúcio Soares
Neto entre os mandatários do frigorífico, que contabilizavam mais um motivo
para colocar o vereador como um opositor central aos interesses da empresa. A
situação dos trabalhadores, no entanto, arrastou-se entre disputas políticas e
o uso eleitoreiro das terras, destinadas a vendas subsidiadas e em longo prazo.
Em 1953, seis anos após a desapropriação da localidade, o jornal comunista Voz Operária denunciava o uso das terras
como moeda política, e acusava o secretário de Agricultura do Rio Grande do
Sul, Maneco Vargas – filho de Getúlio e chefe político do PTB estadual como
beneficiário de tais atos.[9]
Uma liderança local, Bernardino Paz Leal, foi encarregado de organizar uma
relação de todos os que desejassem adquirir um dos 69 lotes, de 25 hectares
cada. Em pouco tempo, mais de 300 pessoas candidataram-se a posse de um pedaço
de terra, mas apenas 23 famílias foram autorizadas a se estabelecer no local,
junto a posseiros que lá viviam há décadas. Conforme a reportagem, “os demais
pretendentes, não obstante os repetidos telegramas de Bernardino Leal a Maneco
Vargas foram sendo preteridos e as terras permanecendo devolutas”.
A
disputa pelas terras desapropriadas do frigorífico entre grandes pecuaristas
que ali destinavam local para colocar o gado que seria entregue ao abate na
fábrica e uma série de interesses especulativos, colocava em risco as famílias
já estabelecidas e impedia novos assentamentos. Uma das alegações dos
agressores, de que o local seria entregue a novos posseiros vindos do Nordeste,
abre também a suposição de que as terras estariam sendo realocadas pelo próprio
frigorífico, como uma maneira de estabelecer ali novos trabalhadores para a
fábrica. Com a disputa aberta, a violência contra os camponeses tornou-se norma.
Dos
primeiros momentos da desapropriação, levada adiante por Lúcio Soares Neto e
líderes camponeses locais até os confrontos de 1953, os trabalhadores
estabelecidos na fazenda ergueram suas casas e deram início a lavouras para
subsistência e que também abasteciam os bairros vizinhos. Com a ameaça de
despejo reuniram-se em torno de uma grande assembleia, realizada em 12 de
setembro, quando foi lavrado um manifesto dirigido aos camponeses, entidades de
classe, líderes políticos e sindicais e a população da cidade. Reivindicavam a
posse imediata da terra às 23 famílias que lá estavam estabelecidas, medidas
contra os agressores e entrega do restante da área aos camponeses do município.
Bernardino Paz Leal assinou o manifesto de convocação da Conferência Nacional
dos Trabalhadores Agrícolas, que pedia a implementação de direitos civis e
trabalhistas e a reforma agrária.
Embora
alguns movimentos armados e de guerrilha já estivessem se ensaiando no campo,
na maior parte das vezes o PCB atuava nas brechas da lei, jogando com a
legalidade e institucionalidade, dentro de um contexto de grande investimento
do partido no meio rural.[10]
Pouco mais de seis meses após a redação do manifesto, o Voz Operária denunciava mais uma vez a continuidade das
arbitrariedades contra os camponeses e o prosseguimento do despejo, agora com
ordem judicial e sem uma interferência efetiva do líder petebista, Camilo Alves
Gisler, em prol dos atingidos. As famílias já não contavam com o arame para
proteção das terras e um “preposto” de Maneco Vargas estaria atuando com
liberdade no arrendamento das terras para carreteiros e tropas destinadas ao
abate.[11]
Se
após 1950, com toda repressão que incidiu sobre o grupo comunista, Lúcio Soares
Neto estaria alijado do debate parlamentar, ainda no combativo ano de 1947, a
luta pelas terras que circundavam o frigorífico somava-se a mais um entrave
entre trabalhadores e patrões. Desta vez, através de uma demanda que
atravessava categorias e se alastrava por todo o país: o pagamento do abono de
Natal. A solicitação da gratificação natalina, que só seria incorporada na lei
como um 13º salário à custa de muitas greves e lutas operárias mais de uma
década depois, era pauta central dos trabalhadores naquele momento. Uma
solicitação dos operários aos legisladores, que pediam a interferência junto à
direção da fábrica para o pagamento do abono foi entregue à Câmara no dia 24 de
dezembro. Dois requerimentos que somavam as assinaturas de 613 operários, do
Frigorífico Armour e Charqueada São Paulo, solicitava a interferência do poder
legislativo junto a direção de ambos estabelecimentos para que fossem
concedidos os abonos de natal. Após um debate acalorado sobre a pertinência de
uma intervenção do legislativo em assuntos empresariais, foram nomeados os
vereadores para compor uma comissão destinada a tratar o assunto com as
respectivas diretorias. A Comissão informava que a Charqueada São Paulo havia
pagado o abono, mas no Armour, a diretoria “ausentou-se da cidade, sem deixar
substituto legal”. Finalmente, no último dia do ano, com a volta do “diretor”,
nunca nomeado pela comissão ou pelos membros da casa legislativa, sabe-se que o
abono não fora pago devido a um “entrave entre operários da safra verde e
operários da safra seca”. Segundo os membros da comissão parlamentar, a direção
alegou que os custos do abono chegariam a Cr$ 2 milhões, por isso os operários
teriam de esperar a chegada de um representante do frigorífico, de Chicago. A
espera foi em vão. No ano de 1947 não foi pago o abono de Natal aos
trabalhadores do Frigorífico Armour.
O
ano que recém iniciava não seria diferente quanto às lutas empreendidas pelos
trabalhadores santanenses, mas teria o acréscimo de uma radicalização promovida
pelos braços locais da polícia política do estado, que exerciam permanente
vigilância sobre o grupo operário, dentro do sindicato e entre seus
representantes na Câmara de Vereadores. Em 5 de janeiro, um grupo de 30
trabalhadores da indústria de panificação e confeitaria encaminhava à Câmara
uma proposta de apoio às recentes manifestações dos vereadores em defesa dos
mandatos dos parlamentares comunistas.[12]
As demandas mais urgentes dos trabalhadores localizados no distante bairro
industrial, no entanto, desafiavam o clima de incertezas e a crescente
repressão aos movimentos sociais ligados de alguma maneira ao campo popular e a
luta do grupo comunista. As condições inadequadas de transporte do centro até o
bairro, que sempre fora um entrave para que os operários se deslocassem de
locais mais afastados até a fábrica entrava mais uma vez na pauta da Câmara.
Desta vez dizia respeito a proposição de mudança de horários dos ônibus que
faziam a linha do centro ao bairro industrial, especialmente em relação ao
último horário, das 22h30min, o qual os trabalhadores reivindicavam que
passasse para as 24 horas. A casa solicitava ao empresário João Tlustak,
proprietário da companhia de transporte coletivo, que enviasse dados sobre o
desempenho da empresa e a possível mudança de horários. Enquanto aguardavam o
encaminhamento da demanda, os operários são surpreendidos por uma onda de
repressão, logo após a cassação dos mandatos parlamentares comunistas em todo o
país, atingindo especialmente os trabalhadores dos frigoríficos Armour, em
Santana do Livramento e o Swift, em Rosário. Em 12 de janeiro, Lúcio Soares
Neto denuncia que a cidade fora
“severamente policiada, ao ponto de provocar inúmeros boatos veiculados pela
imprensa e pelo rádio nacional e estrangeiro, determinando desmentidos das mais
altas autoridades do país de que houvesse perturbação da ordem em Santana e
Rosário, como se propalava”.[13]
Em um embate que só iria aumentar a partir daquele momento, Lúcio denuncia o
delegado Miguel Zacharias como “o responsável pela intranquilidade porque passa
a população de Livramento”, cujo açodamento criara um ambiente de ficção, com
infundados temores de perturbação que deflagraram medidas extremas de
repressão. Conforme Lúcio, “os pacatos operários do Armour, quando largavam do
serviço e dirigiam-se para casa eram assaltados e revistados pelos policiais”.
Em resposta ao gesto arbitrário da polícia, o vereador enviou um telegrama de
protesto endereçado ao governador do estado, Walter Jobim, ao chefe de Polícia
em Porto Alegre e à Assembleia Legislativa.
A
intranquilidade dos operários quanto ao descumprimento de normas legais e a não
aplicação de artigos de proteção ao trabalhador, aprovados pela nova
Constituição, movimentava os círculos sindicais. Em requerimento entregue à
Câmara, os trabalhadores da indústria da panificação solicitavam a
interferência legislativa na imediata aplicação do artigo 157 da constituição
federal, que determinava o pagamento correspondente ao trabalho aos domingos,
feriados e dias santificados. O pedido abriu uma ampla discussão, onde parte da
bancada do PSD e UDN defendia não ser da alçada local, mas federal, tal
atribuição e que nem mesmo o pagamento do abono de Natal aos operários do
frigorífico havia sido levado adiante, dada a inadequação da ingerência daquela
casa em assuntos estritamente empresariais. A Câmara também se eximia de
responsabilidade quanto a intervenção do governo no sindicato dos panificadores
e também dos tripeiros, que até aquele momento não permitia eleições livres e
que fossem representativas dos trabalhadores.
Com
o crescimento da insatisfação dos trabalhadores do frigorífico frente às
demandas não atendidas e o enfrentamento promovido por fora dos círculos
oficiais do sindicato, tendo Amaro Gusmão e Lúcio Soares Neto como os
interlocutores com a Câmara de Vereadores, ganhava força uma diretriz de
paralização contra a empresa. Nos discursos recorrentes, o frigorífico era
ligado ao imperialismo norte-americano, em uma associação aos monopólios
comerciais e industriais, que de acordo com a leitura comunista significava
nada menos que a evasão de divisas do país pelos grandes capitalistas
estrangeiros. A disputa pelas mentes operárias preconizava um enfrentamento às
ideias disseminadas pelos comunistas, que associavam o capital estrangeiro ao
imperialismo e a consequente exploração da classe trabalhadora. Na capital do
estado, onde a esquerda possuía maior capacidade mobilizadora, udenistas e
pessedistas miravam os redutos eleitorais proletários e sindicais. No distante
bairro industrial isso se repetia, em um padrão condizente com o campo em
disputa. As ações eram esporádicas, e se concentravam em datas especiais como
no Natal de 1948, quando o diretório da UDN local promoveu entre os operários
do Armour um churrasco que reuniu os grandes caciques do partido. O jornal O
Republicano, porta-voz dos liberais, especialmente da família Flores da Cunha,
anotava o comparecimento de “várias centenas de correligionários daquele bairro
e adjacências da cidade”. Presentes, Francisco Flores da Cunha, ex-senador da
República e presidente de honra do diretório municipal, Dr. Hugolino Leal de
Andrade, presidente do diretório local, Guilherme Flores da Cunha, secretário,
e lideranças locais como Francisco Pedro Carneiro, Celso Prado, Enedino de
Carvalho, entre outros.[14]
Greve,
repressão e mortes
As
ações de enfrentamento contra as lideranças operárias, que tinham em Amaro Gusmão
e Pantaleão Corsini dois dos mais combativos ativistas comunistas, resultaram
no afastamento da antiga direção e a intervenção de uma Junta Governativa que
passaria a comandar o sindicato. Meses antes da greve que iria paralisar por
alguns dias o frigorífico e deixar marcadas as atuações de Lúcio Soares Neto e
Amaro Gusmão como as lideranças por trás do sindicato, uma ação pública é
instaurada. Partia de uma denúncia que tinha por protagonistas o presidente
licenciado do sindicato, Mário Coelho Leal e Porfírio Leal Machado, tesoureiro
da Junta Governativa. Amaro Gusmão, Pantaleão Harden Corsini e Horacílio
Rodrigues seriam acusados nas páginas de O Republicano de “apropriação indébita
e malbaratamento dos fundos sindicais”.
Frente
às constantes instabilidades entre a representatividade do sindicato, posta sob
suspeição por líderes que trabalhavam à sombra daquela estrutura, e a
inoperância do poder legislativo em mediar os conflitos entre empresa e
trabalhadores, a greve no Frigorífico Armour arrebentou em uma sexta-feira, dia
1º de abril de 1949. Sob a pressão aberta do executivo municipal, que tinha na
empresa a maior fonte de arrecadação de impostos e com os impasses
estabelecidos frente à defasagem salarial, além da repressão aberta da polícia,
a polarização extrapolou os limites de qualquer negociação. Na pauta de
reivindicações constavam itens como o aumento salarial por produtividade e a
extinção do imposto sindical.
Em
uma operação policial que reuniu Brigada Militar, Exército e Polícia Civil, os
líderes grevistas foram duramente reprimidos pelos mesmos agentes que pouco
mais de um ano depois iriam estar à frente da chacina do Parque Internacional.
Na sexta-feira, dia em que estourou o movimento paredista, a força policial
agiu com truculência. Em uma operação policial que reuniu Brigada Militar,
Exército e Polícia Civil, os líderes grevistas foram duramente reprimidos pelos
mesmos agentes que pouco mais de um ano depois iriam estar à frente da chacina
do Parque Internacional. Na sexta-feira, dia em que estourou o movimento
paredista, a força policial agiu com truculência.
No
sábado, dia 2 de abril, os presos foram libertados após um habeas-corpus e a
greve parcialmente enfraquecida, com a volta de 300 operários ao trabalho, sob
escolta policial. Entre os cerca de 1.600 trabalhadores, eles aceitaram a
proposta que oferecia um aumento de 20% sobre os salários. Ainda assim muitos
operários se negavam a aceitar a proposta que a diretoria dava como última
opção para os que quisessem permanecer empregados. O desfecho da paralisação
ainda se arrastaria por mais dois dias até que retornassem ao trabalho cerca de
1.300 operários. Pelo menos 300 seriam sumariamente demitidos.
As marcas da greve, no entanto,
permaneceriam como uma ferida aberta especialmente em relação aos ativistas
políticos envolvidos na organização dos operários. Em plena eclosão da guerra
da Coréia, quando o envio de carne e produtos derivados para as tropas aliadas
seria de suma importância, a repressão aberta aos ativistas foi selada. E
chegou de maneira explícita na noite
de 24 de setembro de 1950, que ficaria marcada na história da fronteira
devido ao assassinato de quatro militantes comunistas, reunidos em frente ao
Parque Internacional. O ato, de panfletagem e pichação, seria de afronta ao
governo Dutra, de adesão aos candidatos apoiados pelos comunistas às eleições
que se avizinhavam, de rechaço ao fascismo e contra o imperialismo,
reforçando o teor da linha adotada pelo partido, especialmente após o radical “Manifesto
de Agosto”.[15]
Conhecido posteriormente como a chacina dos quatro As, pois o nome dos mortos
iniciavam todos sob a letra A - Aladim Rosales, Ary Kulmann, Aristides Ferrão
Corrêa Leite e Abdias da Rocha - o crime teve a participação ativa de
policiais, pistoleiros e representantes de latifundiários, que faziam parte do
grupo que chegou atirando, conforme a versão dos comunistas. À frente do bando
agressor estavam o comandante da Brigada Militar em Santana do Livramento, Eleú
Gomes da Silva; o comandante do Exército, Ciro de Abreu, o delegado da polícia
civil, Miguel Zacarias, o advogado Mário Cunha e o inspetor de polícia Ário
Castilhos, entre outros. Ao final de menos de 15 minutos de confronto,
jaziam os corpos dos quatro militantes assassinados, e um saldo de pelo menos
mais oito feridos, entre eles o secretário do partido, Lúcio Soares Neto.
Após
o conflito em frente ao Parque Internacional, a trajetória do grupo comunista
iria ficar abertamente proscrita e o reagrupamento dos militantes remanescentes
se daria de forma gradual nos próximos anos, especialmente reunidos em torno do
PTB e suas bandeiras trabalhistas. Em Santana, o carisma do líder petebista
Camilo Alves Gisler iria ser decisivo para a chegada sucessiva ao Palácio
Moysés Vianna de quatro prefeitos do PTB, depois de um breve período de líderes
pessedistas após o Estado Novo. João Souto Duarte (1952-1956) e Pancho Góes
(1956-1960), foram eleitos pelo “cabo eleitoral” Camilinho, que por fim assumiu
a prefeitura em 1960, vencendo com ampla vantagem os concorrentes. Com o
assassinato de Camilinho por Pancho Góes, em 18 de agosto de 1961, em um crime nebuloso
que envolveu disputas internas no PTB, assumiu seu vice, Hermínio de Menezes.
Finalmente, em 1964, o ex-secretário de João Souto Duarte, o petebista Sérgio
Fuentes, assumiria pelo partido mais uma vez o paço municipal, sendo cassado
logo após pelo golpe de 1964, que iria depor pelas armas o presidente João
Goulart e marcaria o final do período democrático iniciado em 1945.
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RANGEL, Carlos Roberto da Rosa. Crime e Castigo. Conflitos Políticos no Rio
Grande do Sul (1928-1938). Passo Fundo: Editora UPF, 2001.
SCHÄFFER, Neiva. A Urbanização na Fronteira.
Porto Alegre: Editora da Universidade, 1993.
*Marlon Aseff é jornalista e historiador. Doutor em
História Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
[1] Embora
o país iniciasse um processo de retomada democrática, persistiam os instrumentos
de repressão e a não reparação dos crimes do regime que findava.
[2]
RANGEL, Carlos Roberto da Rosa. Crime e
Castigo. Conflitos políticos no Rio Grande do Sul (1928-1938). Passo Fundo:
UPF Editora, 2001, p. 47.
[3] SCHÄFFER, Neiva. A
Urbanização na Fronteira. Porto Alegre:
Editora da Universidade, 1993.
[4]
O Republicano surge em 1941 como meio de oposição da família Flores da Cunha ao
governo de Getúlio Vargas. Sob direção do ex-senador Francisco Flores da Cunha,
o jornal circula até 1952, já sob o ideário udenista e o anticomunismo vigente
após a redemocratização.
[5]
Em 7 de maio de 1947, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra, o PCB tem o
registro cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral, sob a alegação de que a
legenda seria contrária ao regime democrático. À cassação da legenda
seguir-se-ia a de todos seus parlamentares eleitos, em 10 de janeiro de 1948.
[6]
Jorge Alves Ferrão. Entrevista concedida ao autor, em 11 de outubro de 2015, em
Santana do Livramento.
[7]
A
política de união nacional, contra o nazi-fascismo e a aproximação com Vargas,
fortaleceu-se não sem certa resistência interna depois da Conferência da
Mantiqueira (1943), conferindo uma linha política moderada. Conforme o
historiador Daniel Aarão, a idéia de que era preciso compor uma aliança ampla,
incluindo o ditador estado novista, foi aceita em favor de um avanço das lutas
sociais e do crescimento do partido. A proposta durou até o final de 1946,
sendo abandonada após os ataques que resultaram na cassação dos mandatos
comunistas em todo o país e a repressão aberta. REIS
FILHO, Daniel Aarão. Entre reforma e revolução: a
trajetória do Partido Comunista no Brasil entre 1943 e 1964. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI,
Marcelo (Org.). História do marxismo no Brasil. Campinas, SP: Editora
da Unicamp, vol. 5, 2002.
[8]
Câmara de Vereadores de Santana do Livramento. Ata n. 7. 15 de dezembro de 1947, p. 11.
[9]
Maneco Vargas prometeu as terras e quer agora despejar os camponeses. Voz Operária, Rio de Janeiro, 8 de
agosto de 1953, p. 8.
[10]
MACHADO, Paulo Pinheiro. Curso História
dos Comunistas Brasileiros Parte 3, 1945-1964. Terceiro Módulo do Curso
História dos Comunistas Brasileiros, promovido pelo Portal A Coluna e PCLCP.
Acessado em: 8 nov. 2020.
[11]
Maneco Vargas prometeu as terras e quer agora despejar os camponeses. Voz Operária, Rio de Janeiro, 8 de
agosto de 1953, p. 8.
[12]
Poucos
dias depois, em 10 de janeiro, o projeto de cassação foi aprovado na Câmara dos
Deputados por ampla margem de votos: 179 contra 74. O historiador Augusto
Buonicore anota que o PSD votou massivamente a favor da cassação, seguido pelos
pequenos partidos conservadores. Já a UDN dividiu-se e a maioria dos deputados
do PTB se posicionou contra a cassação. Apud: BUONICORE, Augusto; RUY, José
Carlos. Contribuição à história do
Partido Comunista do Brasil. São Paulo: Anita Garibaldi, 2010.
[13]
Câmara de Vereadores de Santana do Livramento. Ata n. 19, 12 de janeiro de 1948, p. 33.
[14]
Grande churrasco e comício democrático no bairro Armour. O Republicano, Santana do livramento, 6 de janeiro de 1949, p. 1.
[15] O Manifesto de Agosto de 1950, redigido
por um Luis Carlos Prestes acuado, marca a guinada do PCB em direção a uma
proposta de luta de classes aberta, abandonando a política de conciliação,
adotada pelo partido desde 1943. Em meio a um ambiente de guerra fria e caça
aos comunistas, o partido decide pela radicalização, com o uso das armas se
necessário, tendo o governo Dutra e os “traidores da nação” como alvos a serem
combatidos.