domingo, 1 de junho de 2025

 

DEMOCRACIA E REPRESSÃO NA FRONTEIRA: AS LUTAS OPERÁRIAS NO PÓS-ESTADO NOVO

 

                     * Marlon Aseff

 

O final do período histórico conhecido como Estado Novo (1937-1945) e a transição para a democracia, com a promulgação da nova constituição em 1946, é marcado em Santana do Livramento por uma renovada correlação de forças políticas e a entrada de novos atores em cena. A redemocratização, com a retomada das atividades na Câmara de Vereadores e novas eleições para o Palácio Moysés Vianna, seria assinalada pela breve legalidade do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e uma disputa política crescente, até os conflitos que marcariam momentos de crise na década de 1950 e o período seguinte, em que a instabilidade política iria desaguar no golpe civil-militar de 1964. 

Em um recorte nacional, esse momento marca uma quadra em que os trabalhadores viviam as agruras da inflação, com o aumento no custo de vida somado a uma experiência que remetia ainda às medidas de exceção impostas pelo Estado de Guerra, com suas características de disciplinarização e controle social.[1] Na fronteira a disputa por novas legitimidades políticas tinha sua centralidade ligada as demandas dos trabalhadores reunidos em torno Frigorífico Armour, que já por quase três décadas se consolidava como o grande motor econômico da região.

Situado às margens do arroio Rincão da Carolina, distante cerca de dez quilômetros do centro da cidade, o frigorífico norte-americano foi erguido a partir de 1917 onde antes funcionava a Charqueada Livramento, levando pelo menos três anos para se estruturar nos moldes de uma produtividade similar às demais fábricas congêneres no Prata. O impacto que a implantação do frigorífico causou entre os fronteiriços naquele início de século superou o mero fator econômico, ampliando-se aos padrões de construção das casas de gerentes e altos funcionários até minúcias de hábitos alimentares e de lazer.

O frigorífico consolidava naquele momento a força econômica dos grandes mandatários, que se mantinham muitas vezes à margem de um ordenamento jurídico que propusesse um papel tutelar do Estado sobre a sociedade. De acordo com o historiador Carlos Rangel, essa permeabilidade de fronteira a constante transgressão das normas fiscais originou uma forma de vida à margem de um projeto de desenvolvimento nacional.  Acrescente-se a isso um conservadorismo provinciano, com forte acento rural, que mantinha depois da revolução de 1930 as mesmas estruturas políticas e administrativas herdadas da república velha. O patronato político local de Santana do Livramento, representado pela família Flores da Cunha desde 1910, tornava o município um reduto do situacionismo republicano. José Antônio Flores da Cunha, que seria interventor e governador do Rio Grande do Sul, ganhou notoriedade combatendo os revolucionários de 1923, com o apoio do caudilho uruguaio Nepomuceno Saraiva. Seu irmão, o coronel Francisco Flores da Cunha, conhecido como Chico Flores, governou Santana do Livramento de 1924 a 1928, foi presidente do poderoso Sindicato dos Charqueadores, cogitado a ocupar o Ministério da Justiça em 1932 e eleito senador em 1935. Na fronteira, seguiam o modelo político vigente no Rio Grande durante a República Velha, onde o coronel fazia a política e suplementava a administração pública no âmbito municipal, numa troca de proveitos com o governo estadual.[2] Nesse cenário de desalinhos, inseria-se o frigorífico como aliado natural do chefe político Chico Flores, detentor das práticas “oficiais” do contrabando na região. O advento dos grandes latifúndios e a pecuária extensiva, pouco exigente com a qualificação de mão de obra, seria oriunda da distribuição inicial de terras em sesmarias e uma concentração urbana resultante de um “capitalismo dependente, num nível externo, e segregador, no âmbito da cidade”.[3]

A partir da década de 1940, com o definhamento do período abertamente repressivo do Estado Novo, o contraponto ao poder dos grandes chefes e detentores do capital no município iria crescer também dentro do frigorífico. Na linha de frente, os adeptos do ideal comunista, reunidos em torno do pedreiro e sindicalista Santos Soares, e posteriormente ligados às lideranças que atuavam diretamente no chão de fábrica, como Amaro Gusmão, e também a um grupo heterogêneo que reunia nas fileiras formais ou informais do PCB, desde trabalhadores a pequenos pecuaristas e advogados.

Com a volta a legalidade no final de 1945, o PCB passa por um gradual processo de reestruturação em Santana do Livramento, que iria culminar no ano seguinte. Santos Soares comandava desde a década anterior um grupo coeso na proposta de consolidação de uma maior consciência de classe entre os trabalhadores fronteiriços. No âmbito nacional, com a deposição de Vargas e as candidaturas de Eduardo Gomes, Eurico Gaspar Dutra e Yedo Fiuza colocadas à rua, o campo de disputa pelos votos dos trabalhadores alinhava-se entre os recém-criados partidos políticos. Mais afinados ao que restava da antiga situação estado novista, o PSD (Partido Social Democrático) reunia políticos e burocratas ligados ao antigo regime. O segundo grupo de situacionistas, também alinhados na legenda, seriam os grandes proprietários de terras e industriais. Esse quadro completava-se com parte dos trabalhadores urbanos, que brandiam a legislação trabalhista e a organização sindical, mesmo que paternalista e controlada pelo estado, alinhados ao PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), também idealizado pelo ex-ditador. Entre as lideranças da nova sigla, destacava-se o Ministro do Trabalho, Alexandre Marcondes Filho, responsável pela consolidação das leis destinadas ao amparo dos trabalhadores, com a criação de uma “mística trabalhista” e o gaúcho Alberto Pasqualini, que viria a ser um ideólogo do partido.

A oposição, reunida em torno da UDN (União Democrática Nacional), imbuía-se desde o início no estímulo indisfarçado ao Exército, para efetivar a deposição de Vargas, consolidada finalmente em 29 de outubro. A manobra previa aniquilar os desejos “queremistas”, que pediam a “constituinte com Getúlio” conferindo nova coloração a eleição presidencial, unindo trabalhistas e comunistas em uma causa comum. Os udenistas propagavam um princípio liberal que previa o desentrave burocrático para o livre fluxo de capital, controle mais brando aos investidores externos e o incentivo às exportações, entretanto, não se contrapunham a estrutura corporativa estatal, especialmente ao sistema de sindicatos manipulados pelo governo, herança de Vargas. Como podemos confirmar nas recorrentes notas publicadas no jornal liberal santanense O Republicano, também pesavam para os udenistas locais os constantes entraves que o governo impunha, dificultando as exportações do frigorífico, uma queixa que iria persistir mesmo após o manto liberalizante do governo Dutra.[4]

No plano nacional, o PCB experimentaria a euforia de um desempenho sem precedentes, com a eleição de Luís Carlos Prestes para o Senado e outros 14 deputados para a Constituinte de 1946, além da performance excepcional do candidato da legenda a presidência, Yedo Fiúza, que obtivera 10% do total de votos. O crescimento vertiginoso da sigla iria culminar em 1947, ano em que voltaria a ilegalidade, com cerca de 200 mil filiados em todo o país.[5] Em Santana do Livramento, o taxista Jorge Alves Ferrão vivia a adolescência no bairro do Prado, um local então bastante afastado do centro da cidade, ligado a serviços rurais e pequenos comércios. Ainda muito jovem, com 15 anos incompletos, somou-se aos comunistas. Reuniu “perto de 30 guris”, como ele, e fundou uma Ala Jovem.

Nos finais de semana, especialmente, o grupo comunista partia em missões pelas zonas rurais e bairros da periferia, com o intuito de arrebanhar mais gente para a luta social e esclarecer o proletariado fronteiriço das injustiças vigentes. Os trabalhadores do campo, de fato, só viriam a conhecer as benesses da CLT em 1962, com a legalização dos sindicatos rurais e a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural. Ferrão recorda dos anos de militância e os nomes mais recorrentes das incursões comunistas pelo município:

Naquele tempo o meu tio, José Ferrão, era concessionário do transporte coletivo aqui, então nos domingos normalmente nós tínhamos um ônibus para fazer comícios na campanha. Andei muito pela Vigia e por aí tudo. Tinha um número de tribuno ali que estavam sempre de plantão. Um deles era o Santos Soares, o Felício Corrêa, uma turma grande, nós conseguíamos encher um ônibus. O Santos Soares era um homem de um conhecimento bárbaro. O partido levava a classe dominante por diante aqui, não? O Santos Soares, o Aladin Rosales, gente muito inteligente, impressionavam no comício. Diziam as coisas bem direitinho, os problemas da sociedade. A burguesia naquela época vivia aterrorizada, porque o comício era um atrás do outro, e saía tudo direitinho pra rua. Foi uma época difícil para a classe dominante, por isso a repressão toda. Apagar o partido... foi o único jeito. Até ali era brabo para o lado deles. E foi em várias cidades, em Rio Grande. E depois tinha o Armour, que tinha o Amaro Gusmão, o presidente do sindicato. E o Pantaleão Corsino, o vice-presidente. E eles não deixavam os gringos dormir tranquilo, bah... [6]

A repressão aos comunistas na fronteira, que se acentuaria com a cassação da representatividade parlamentar do partido, tomava forma como uma resposta ao poder de organização dos trabalhadores, que tinham entre seus líderes, além de Santos Soares, o advogado Lúcio Soares Neto, o jornalista Solon Pereira Neto, o sindicalista Amaro Gusmão, entre outros batalhadores da causa operária. Em 1946, com a legalidade à pleno, o grupo passaria a participar ativamente do debate político local, ainda sob o manto da colaboração de classes e com os setores progressistas da burguesia, como preconizava a diretriz do partido desde 1943, e que tinha naquele momento um aliado em Vargas.[7]

Com a redemocratização e o restabelecimento da liberdade política, a reorganização dos partidos e a retomada das eleições diretas para os cargos executivos e legislativos, voltavam à cena os anseios dos trabalhadores como peça chave nessa nova configuração do jogo político municipal. Na Câmara de Vereadores, a disputa por um espaço nos corações e mentes operárias dava-se através do embate entre as matizes ideológicas em jogo. O advogado Lúcio Soares Neto, reconhecido por sua atuação junto aos trabalhadores, muitos deles ligados ao frigorífico, seria o suplente do líder operário Amaro Gusmão, ambos ligados ao grupo comunista, eleitos pelo PSP. Juntos, dividiam a interlocução direta com o sindicato dos tripeiros – os trabalhadores do frigorífico. Mais tarde, o jornalista Solon Pereira Neto, eleito pelo PSD, também iria perfilar-se às ideias comunistas, quando se dá a radicalização em torno das demandas operárias em oposição aos interesses do frigorífico e grandes proprietários rurais. Nas eleições de 15 de novembro de 1947, o PSD obteve a maioria parlamentar, com sete vereadores eleitos, seguido pelo PTB (3), UDN (2), PSP (1) e PL (1). Foram eleitos Miguel Alves Medina (PSD), Solon Pereira Neto (PSD), Ottoni Cademartori (PSD), Concesso Cassales (PSD), Juracy Pinheiro Ribeiro (PSD), Antônio Iruleguy (PSD), Victorino Soares Pinto (PSD), Nery Ucha (PTB), Atalício Machado Soares (PTB), Moysés dos Santos Rodrigues (PTB), Romagueira de Oliveira (UDN), Antônio Joaquim Andrade de Oliveira (UDN), Aldrovando Sant’Anna (PL), Amaro Gusmão (PSP). Na Prefeitura Municipal, o PSD elegeria Silvio Cademartori, prefeito, e Flávio Mena Barreto, vice.

Luta pela terra

No final de dezembro de 1947, Lúcio Soares Neto elencava aos colegas de tribuna as dificuldades por que passavam os trabalhadores que viviam no bairro industrial, solicitando que seus pares encaminhassem à Assembleia Legislativa do Estado as demandas necessárias para que fosse iniciado um processo de aquisição da chamada “Fazenda Armour”, uma grande extensão de terras onde o frigorífico possuía participação, para que fossem loteadas entre os operários, e especialmente entre a população local, desassistida nos períodos de entressafra, onde se tornava quase insustentável a sobrevivência econômica de centenas de trabalhadores.

Conforme o vereador, as terras deveriam ser “repartidas em colônias e chácaras e distribuídas aos agricultores sem-terra e operários especializados na indústria do frio, carnes e derivados, atualmente em angustiosa situação econômica devido a safra seca e aqueles ameaçados de despejo, ou que pagam arrendamentos elevados, vivendo uma vida intranquila”.[8] A luta dos camponeses estabelecidos na extensão de 1.740 hectares, muitos vivendo há mais de 20 anos naquelas terras, junto aos operários que ali buscavam a sobrevivência ocasional em períodos de entressafra, foi parcialmente vitoriosa. Após intensos debates, o local foi adquirido pela secretaria estadual de Agricultura e destinado a uma distribuição posterior aos posseiros. O débito da vitória política ficaria marcado na ficha corrida de Lúcio Soares Neto entre os mandatários do frigorífico, que contabilizavam mais um motivo para colocar o vereador como um opositor central aos interesses da empresa. A situação dos trabalhadores, no entanto, arrastou-se entre disputas políticas e o uso eleitoreiro das terras, destinadas a vendas subsidiadas e em longo prazo. Em 1953, seis anos após a desapropriação da localidade, o jornal comunista Voz Operária denunciava o uso das terras como moeda política, e acusava o secretário de Agricultura do Rio Grande do Sul, Maneco Vargas – filho de Getúlio e chefe político do PTB estadual como beneficiário de tais atos.[9] Uma liderança local, Bernardino Paz Leal, foi encarregado de organizar uma relação de todos os que desejassem adquirir um dos 69 lotes, de 25 hectares cada. Em pouco tempo, mais de 300 pessoas candidataram-se a posse de um pedaço de terra, mas apenas 23 famílias foram autorizadas a se estabelecer no local, junto a posseiros que lá viviam há décadas. Conforme a reportagem, “os demais pretendentes, não obstante os repetidos telegramas de Bernardino Leal a Maneco Vargas foram sendo preteridos e as terras permanecendo devolutas”.

A disputa pelas terras desapropriadas do frigorífico entre grandes pecuaristas que ali destinavam local para colocar o gado que seria entregue ao abate na fábrica e uma série de interesses especulativos, colocava em risco as famílias já estabelecidas e impedia novos assentamentos. Uma das alegações dos agressores, de que o local seria entregue a novos posseiros vindos do Nordeste, abre também a suposição de que as terras estariam sendo realocadas pelo próprio frigorífico, como uma maneira de estabelecer ali novos trabalhadores para a fábrica. Com a disputa aberta, a violência contra os camponeses tornou-se norma.  

Dos primeiros momentos da desapropriação, levada adiante por Lúcio Soares Neto e líderes camponeses locais até os confrontos de 1953, os trabalhadores estabelecidos na fazenda ergueram suas casas e deram início a lavouras para subsistência e que também abasteciam os bairros vizinhos. Com a ameaça de despejo reuniram-se em torno de uma grande assembleia, realizada em 12 de setembro, quando foi lavrado um manifesto dirigido aos camponeses, entidades de classe, líderes políticos e sindicais e a população da cidade. Reivindicavam a posse imediata da terra às 23 famílias que lá estavam estabelecidas, medidas contra os agressores e entrega do restante da área aos camponeses do município. Bernardino Paz Leal assinou o manifesto de convocação da Conferência Nacional dos Trabalhadores Agrícolas, que pedia a implementação de direitos civis e trabalhistas e a reforma agrária.

Embora alguns movimentos armados e de guerrilha já estivessem se ensaiando no campo, na maior parte das vezes o PCB atuava nas brechas da lei, jogando com a legalidade e institucionalidade, dentro de um contexto de grande investimento do partido no meio rural.[10] Pouco mais de seis meses após a redação do manifesto, o Voz Operária denunciava mais uma vez a continuidade das arbitrariedades contra os camponeses e o prosseguimento do despejo, agora com ordem judicial e sem uma interferência efetiva do líder petebista, Camilo Alves Gisler, em prol dos atingidos. As famílias já não contavam com o arame para proteção das terras e um “preposto” de Maneco Vargas estaria atuando com liberdade no arrendamento das terras para carreteiros e tropas destinadas ao abate.[11]

Se após 1950, com toda repressão que incidiu sobre o grupo comunista, Lúcio Soares Neto estaria alijado do debate parlamentar, ainda no combativo ano de 1947, a luta pelas terras que circundavam o frigorífico somava-se a mais um entrave entre trabalhadores e patrões. Desta vez, através de uma demanda que atravessava categorias e se alastrava por todo o país: o pagamento do abono de Natal. A solicitação da gratificação natalina, que só seria incorporada na lei como um 13º salário à custa de muitas greves e lutas operárias mais de uma década depois, era pauta central dos trabalhadores naquele momento. Uma solicitação dos operários aos legisladores, que pediam a interferência junto à direção da fábrica para o pagamento do abono foi entregue à Câmara no dia 24 de dezembro. Dois requerimentos que somavam as assinaturas de 613 operários, do Frigorífico Armour e Charqueada São Paulo, solicitava a interferência do poder legislativo junto a direção de ambos estabelecimentos para que fossem concedidos os abonos de natal. Após um debate acalorado sobre a pertinência de uma intervenção do legislativo em assuntos empresariais, foram nomeados os vereadores para compor uma comissão destinada a tratar o assunto com as respectivas diretorias. A Comissão informava que a Charqueada São Paulo havia pagado o abono, mas no Armour, a diretoria “ausentou-se da cidade, sem deixar substituto legal”. Finalmente, no último dia do ano, com a volta do “diretor”, nunca nomeado pela comissão ou pelos membros da casa legislativa, sabe-se que o abono não fora pago devido a um “entrave entre operários da safra verde e operários da safra seca”. Segundo os membros da comissão parlamentar, a direção alegou que os custos do abono chegariam a Cr$ 2 milhões, por isso os operários teriam de esperar a chegada de um representante do frigorífico, de Chicago. A espera foi em vão. No ano de 1947 não foi pago o abono de Natal aos trabalhadores do Frigorífico Armour.

O ano que recém iniciava não seria diferente quanto às lutas empreendidas pelos trabalhadores santanenses, mas teria o acréscimo de uma radicalização promovida pelos braços locais da polícia política do estado, que exerciam permanente vigilância sobre o grupo operário, dentro do sindicato e entre seus representantes na Câmara de Vereadores. Em 5 de janeiro, um grupo de 30 trabalhadores da indústria de panificação e confeitaria encaminhava à Câmara uma proposta de apoio às recentes manifestações dos vereadores em defesa dos mandatos dos parlamentares comunistas.[12] As demandas mais urgentes dos trabalhadores localizados no distante bairro industrial, no entanto, desafiavam o clima de incertezas e a crescente repressão aos movimentos sociais ligados de alguma maneira ao campo popular e a luta do grupo comunista. As condições inadequadas de transporte do centro até o bairro, que sempre fora um entrave para que os operários se deslocassem de locais mais afastados até a fábrica entrava mais uma vez na pauta da Câmara. Desta vez dizia respeito a proposição de mudança de horários dos ônibus que faziam a linha do centro ao bairro industrial, especialmente em relação ao último horário, das 22h30min, o qual os trabalhadores reivindicavam que passasse para as 24 horas. A casa solicitava ao empresário João Tlustak, proprietário da companhia de transporte coletivo, que enviasse dados sobre o desempenho da empresa e a possível mudança de horários. Enquanto aguardavam o encaminhamento da demanda, os operários são surpreendidos por uma onda de repressão, logo após a cassação dos mandatos parlamentares comunistas em todo o país, atingindo especialmente os trabalhadores dos frigoríficos Armour, em Santana do Livramento e o Swift, em Rosário. Em 12 de janeiro, Lúcio Soares Neto denuncia que a cidade  fora “severamente policiada, ao ponto de provocar inúmeros boatos veiculados pela imprensa e pelo rádio nacional e estrangeiro, determinando desmentidos das mais altas autoridades do país de que houvesse perturbação da ordem em Santana e Rosário, como se propalava”.[13] Em um embate que só iria aumentar a partir daquele momento, Lúcio denuncia o delegado Miguel Zacharias como “o responsável pela intranquilidade porque passa a população de Livramento”, cujo açodamento criara um ambiente de ficção, com infundados temores de perturbação que deflagraram medidas extremas de repressão. Conforme Lúcio, “os pacatos operários do Armour, quando largavam do serviço e dirigiam-se para casa eram assaltados e revistados pelos policiais”. Em resposta ao gesto arbitrário da polícia, o vereador enviou um telegrama de protesto endereçado ao governador do estado, Walter Jobim, ao chefe de Polícia em Porto Alegre e à Assembleia Legislativa.

A intranquilidade dos operários quanto ao descumprimento de normas legais e a não aplicação de artigos de proteção ao trabalhador, aprovados pela nova Constituição, movimentava os círculos sindicais. Em requerimento entregue à Câmara, os trabalhadores da indústria da panificação solicitavam a interferência legislativa na imediata aplicação do artigo 157 da constituição federal, que determinava o pagamento correspondente ao trabalho aos domingos, feriados e dias santificados. O pedido abriu uma ampla discussão, onde parte da bancada do PSD e UDN defendia não ser da alçada local, mas federal, tal atribuição e que nem mesmo o pagamento do abono de Natal aos operários do frigorífico havia sido levado adiante, dada a inadequação da ingerência daquela casa em assuntos estritamente empresariais. A Câmara também se eximia de responsabilidade quanto a intervenção do governo no sindicato dos panificadores e também dos tripeiros, que até aquele momento não permitia eleições livres e que fossem representativas dos trabalhadores.

Com o crescimento da insatisfação dos trabalhadores do frigorífico frente às demandas não atendidas e o enfrentamento promovido por fora dos círculos oficiais do sindicato, tendo Amaro Gusmão e Lúcio Soares Neto como os interlocutores com a Câmara de Vereadores, ganhava força uma diretriz de paralização contra a empresa. Nos discursos recorrentes, o frigorífico era ligado ao imperialismo norte-americano, em uma associação aos monopólios comerciais e industriais, que de acordo com a leitura comunista significava nada menos que a evasão de divisas do país pelos grandes capitalistas estrangeiros. A disputa pelas mentes operárias preconizava um enfrentamento às ideias disseminadas pelos comunistas, que associavam o capital estrangeiro ao imperialismo e a consequente exploração da classe trabalhadora. Na capital do estado, onde a esquerda possuía maior capacidade mobilizadora, udenistas e pessedistas miravam os redutos eleitorais proletários e sindicais. No distante bairro industrial isso se repetia, em um padrão condizente com o campo em disputa. As ações eram esporádicas, e se concentravam em datas especiais como no Natal de 1948, quando o diretório da UDN local promoveu entre os operários do Armour um churrasco que reuniu os grandes caciques do partido. O jornal O Republicano, porta-voz dos liberais, especialmente da família Flores da Cunha, anotava o comparecimento de “várias centenas de correligionários daquele bairro e adjacências da cidade”. Presentes, Francisco Flores da Cunha, ex-senador da República e presidente de honra do diretório municipal, Dr. Hugolino Leal de Andrade, presidente do diretório local, Guilherme Flores da Cunha, secretário, e lideranças locais como Francisco Pedro Carneiro, Celso Prado, Enedino de Carvalho, entre outros.[14]

Greve, repressão e mortes  

As ações de enfrentamento contra as lideranças operárias, que tinham em Amaro Gusmão e Pantaleão Corsini dois dos mais combativos ativistas comunistas, resultaram no afastamento da antiga direção e a intervenção de uma Junta Governativa que passaria a comandar o sindicato. Meses antes da greve que iria paralisar por alguns dias o frigorífico e deixar marcadas as atuações de Lúcio Soares Neto e Amaro Gusmão como as lideranças por trás do sindicato, uma ação pública é instaurada. Partia de uma denúncia que tinha por protagonistas o presidente licenciado do sindicato, Mário Coelho Leal e Porfírio Leal Machado, tesoureiro da Junta Governativa. Amaro Gusmão, Pantaleão Harden Corsini e Horacílio Rodrigues seriam acusados nas páginas de O Republicano de “apropriação indébita e malbaratamento dos fundos sindicais”.

Frente às constantes instabilidades entre a representatividade do sindicato, posta sob suspeição por líderes que trabalhavam à sombra daquela estrutura, e a inoperância do poder legislativo em mediar os conflitos entre empresa e trabalhadores, a greve no Frigorífico Armour arrebentou em uma sexta-feira, dia 1º de abril de 1949. Sob a pressão aberta do executivo municipal, que tinha na empresa a maior fonte de arrecadação de impostos e com os impasses estabelecidos frente à defasagem salarial, além da repressão aberta da polícia, a polarização extrapolou os limites de qualquer negociação. Na pauta de reivindicações constavam itens como o aumento salarial por produtividade e a extinção do imposto sindical.

Em uma operação policial que reuniu Brigada Militar, Exército e Polícia Civil, os líderes grevistas foram duramente reprimidos pelos mesmos agentes que pouco mais de um ano depois iriam estar à frente da chacina do Parque Internacional. Na sexta-feira, dia em que estourou o movimento paredista, a força policial agiu com truculência. Em uma operação policial que reuniu Brigada Militar, Exército e Polícia Civil, os líderes grevistas foram duramente reprimidos pelos mesmos agentes que pouco mais de um ano depois iriam estar à frente da chacina do Parque Internacional. Na sexta-feira, dia em que estourou o movimento paredista, a força policial agiu com truculência.

No sábado, dia 2 de abril, os presos foram libertados após um habeas-corpus e a greve parcialmente enfraquecida, com a volta de 300 operários ao trabalho, sob escolta policial. Entre os cerca de 1.600 trabalhadores, eles aceitaram a proposta que oferecia um aumento de 20% sobre os salários. Ainda assim muitos operários se negavam a aceitar a proposta que a diretoria dava como última opção para os que quisessem permanecer empregados. O desfecho da paralisação ainda se arrastaria por mais dois dias até que retornassem ao trabalho cerca de 1.300 operários. Pelo menos 300 seriam sumariamente demitidos.

As marcas da greve, no entanto, permaneceriam como uma ferida aberta especialmente em relação aos ativistas políticos envolvidos na organização dos operários. Em plena eclosão da guerra da Coréia, quando o envio de carne e produtos derivados para as tropas aliadas seria de suma importância, a repressão aberta aos ativistas foi selada. E chegou de maneira explícita na noite de 24 de setembro de 1950, que ficaria marcada na história da fronteira devido ao assassinato de quatro militantes comunistas, reunidos em frente ao Parque Internacional. O ato, de panfletagem e pichação, seria de afronta ao governo Dutra, de adesão aos candidatos apoiados pelos comunistas às eleições que se avizinhavam, de rechaço ao fascismo e contra o imperialismo, reforçando o teor da linha adotada pelo partido, especialmente após o radical “Manifesto de Agosto”.[15] Conhecido posteriormente como a chacina dos quatro As, pois o nome dos mortos iniciavam todos sob a letra A - Aladim Rosales, Ary Kulmann, Aristides Ferrão Corrêa Leite e Abdias da Rocha - o crime teve a participação ativa de policiais, pistoleiros e representantes de latifundiários, que faziam parte do grupo que chegou atirando, conforme a versão dos comunistas. À frente do bando agressor estavam o comandante da Brigada Militar em Santana do Livramento, Eleú Gomes da Silva; o comandante do Exército, Ciro de Abreu, o delegado da polícia civil, Miguel Zacarias, o advogado Mário Cunha e o inspetor de polícia Ário Castilhos, entre outros.  Ao final de menos de 15 minutos de confronto, jaziam os corpos dos quatro militantes assassinados, e um saldo de pelo menos mais oito feridos, entre eles o secretário do partido, Lúcio Soares Neto. 

Após o conflito em frente ao Parque Internacional, a trajetória do grupo comunista iria ficar abertamente proscrita e o reagrupamento dos militantes remanescentes se daria de forma gradual nos próximos anos, especialmente reunidos em torno do PTB e suas bandeiras trabalhistas. Em Santana, o carisma do líder petebista Camilo Alves Gisler iria ser decisivo para a chegada sucessiva ao Palácio Moysés Vianna de quatro prefeitos do PTB, depois de um breve período de líderes pessedistas após o Estado Novo. João Souto Duarte (1952-1956) e Pancho Góes (1956-1960), foram eleitos pelo “cabo eleitoral” Camilinho, que por fim assumiu a prefeitura em 1960, vencendo com ampla vantagem os concorrentes. Com o assassinato de Camilinho por Pancho Góes, em 18 de agosto de 1961, em um crime nebuloso que envolveu disputas internas no PTB, assumiu seu vice, Hermínio de Menezes. Finalmente, em 1964, o ex-secretário de João Souto Duarte, o petebista Sérgio Fuentes, assumiria pelo partido mais uma vez o paço municipal, sendo cassado logo após pelo golpe de 1964, que iria depor pelas armas o presidente João Goulart e marcaria o final do período democrático iniciado em 1945.

 

Bibliografia

LOBATO, Mirta Zaida. La vida em las fábricas. Trabajo, protesta y politica en una comunidade obrera, Berisso (1904-1970). Segunda edición. Buenos Aires: Livros Prometeo, 2004.

MORAES, João Quartim. Concepções comunistas do Brasil democrático: esperanças e crispações (1944-1954). In: História do marxismo no Brasil. V. 3. Campinas: Editora Unicamp, 1998.

MARTINS, Marisângela. Dicionário Ilustrado da Esquerda Gaúcha. Anarquistas, comunistas, socialistas e trabalhistas. Porto Alegre: Livraria Palmarinca, 2008.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. República Velha Gaúcha: charqueadas, frigoríficos, criadores. Porto Alegre: IEL/Movimento, 1980.

PRESTES, Luiz Carlos. Contra a Guerra e o Imperialismo. Rio de Janeiro: Editora Horizonte, 1946.

RANGEL, Carlos Roberto da Rosa. Crime e Castigo. Conflitos Políticos no Rio Grande do Sul (1928-1938). Passo Fundo: Editora UPF, 2001.

SCHÄFFER, Neiva. A Urbanização na Fronteira. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1993.

 

 


*Marlon Aseff é jornalista e historiador. Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

[1] Embora o país iniciasse um processo de retomada democrática, persistiam os instrumentos de repressão e a não reparação dos crimes do regime que findava.

[2] RANGEL, Carlos Roberto da Rosa. Crime e Castigo. Conflitos políticos no Rio Grande do Sul (1928-1938). Passo Fundo: UPF Editora, 2001, p. 47.

[3] SCHÄFFER, Neiva. A Urbanização na Fronteira. Porto Alegre: Editora da Universidade, 1993.

[4] O Republicano surge em 1941 como meio de oposição da família Flores da Cunha ao governo de Getúlio Vargas. Sob direção do ex-senador Francisco Flores da Cunha, o jornal circula até 1952, já sob o ideário udenista e o anticomunismo vigente após a redemocratização.

[5] Em 7 de maio de 1947, durante o governo de Eurico Gaspar Dutra, o PCB tem o registro cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral, sob a alegação de que a legenda seria contrária ao regime democrático. À cassação da legenda seguir-se-ia a de todos seus parlamentares eleitos, em 10 de janeiro de 1948.

[6] Jorge Alves Ferrão. Entrevista concedida ao autor, em 11 de outubro de 2015, em Santana do Livramento.

[7] A política de união nacional, contra o nazi-fascismo e a aproximação com Vargas, fortaleceu-se não sem certa resistência interna depois da Conferência da Mantiqueira (1943), conferindo uma linha política moderada. Conforme o historiador Daniel Aarão, a idéia de que era preciso compor uma aliança ampla, incluindo o ditador estado novista, foi aceita em favor de um avanço das lutas sociais e do crescimento do partido. A proposta durou até o final de 1946, sendo abandonada após os ataques que resultaram na cassação dos mandatos comunistas em todo o país e a repressão aberta. REIS FILHO, Daniel Aarão. Entre reforma e revolução: a trajetória do Partido Comunista no Brasil entre 1943 e 1964. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo (Org.). História do marxismo no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, vol. 5, 2002.

[8] Câmara de Vereadores de Santana do Livramento. Ata n. 7. 15 de dezembro de 1947, p. 11.

[9] Maneco Vargas prometeu as terras e quer agora despejar os camponeses. Voz Operária, Rio de Janeiro, 8 de agosto de 1953, p. 8.

[10] MACHADO, Paulo Pinheiro. Curso História dos Comunistas Brasileiros Parte 3, 1945-1964. Terceiro Módulo do Curso História dos Comunistas Brasileiros, promovido pelo Portal A Coluna e PCLCP. Acessado em: 8 nov. 2020.

[11] Maneco Vargas prometeu as terras e quer agora despejar os camponeses. Voz Operária, Rio de Janeiro, 8 de agosto de 1953, p. 8.

[12] Poucos dias depois, em 10 de janeiro, o projeto de cassação foi aprovado na Câmara dos Deputados por ampla margem de votos: 179 contra 74. O historiador Augusto Buonicore anota que o PSD votou massivamente a favor da cassação, seguido pelos pequenos partidos conservadores. Já a UDN dividiu-se e a maioria dos deputados do PTB se posicionou contra a cassação. Apud: BUONICORE, Augusto; RUY, José Carlos. Contribuição à história do Partido Comunista do Brasil. São Paulo: Anita Garibaldi, 2010.

[13] Câmara de Vereadores de Santana do Livramento. Ata n. 19, 12 de janeiro de 1948, p. 33.

[14] Grande churrasco e comício democrático no bairro Armour. O Republicano, Santana do livramento, 6 de janeiro de 1949, p. 1.

[15] O Manifesto de Agosto de 1950, redigido por um Luis Carlos Prestes acuado, marca a guinada do PCB em direção a uma proposta de luta de classes aberta, abandonando a política de conciliação, adotada pelo partido desde 1943. Em meio a um ambiente de guerra fria e caça aos comunistas, o partido decide pela radicalização, com o uso das armas se necessário, tendo o governo Dutra e os “traidores da nação” como alvos a serem combatidos. 

 

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Livramento, colônia cultural de Rivera ?


O local é um pequeníssimo sótão em um bar de Rivera. Ali acontece o show da dupla fronteiriça Nuevos Bayanos. Cercados por inúmeras velas, dispostas em garrafas e espalhadas pelo chão, os artistas vivenciam com um público completamente absorto a celebração de uma nova vanguarda roqueira da região, onde a afirmação do portunhol como pátria legítima e resistência cultural dá o tom. Lou Reed + Olyntho María Simões. Dois poetas que se encontram no inusitado sótão da cidade uruguaia, em uma fusão que emana o novo, recupera o poder da arte como aglutinadora de rebeldias e promotora de novos diálogos.

Fabián Severo já disse que daqui a 300 anos o que está acontecendo na fronteira será estudado como um movimento potente e renovador.

 Mas que fronteira é essa ?

Santana do Livramento comporta-se hoje como uma legítima cidade dormitório, onde a mesma raça humana que se percebe do outro lado da “linha imaginária” dorme em berço não-esplêndido. Alijados das praças iluminadas, dos espaços organizados, da agenda ininterrupta de eventos em seus variados aparelhos de cultura.

Sobrevive um “gauchismo” reducionista que não dá conta do “mais além” de suas fronteiras, e acaba ao mesmo tempo desarticulador e fanfarrão.

Nossas elites sociais e culturais (nossas, dos santanenses) não conseguem mais responder à altura desse tempo estranho – algo que já aconteceu nos anos 70 e 80, quando a cidade certamente viveu dias melhores.

Hoje basta um meme por dia, uma piada de péssimo gosto por dia, um ataque frontal de cunho pseudo-moralista de algum líder de ocasião. E um smartphone na mão, para que todos os funcionários voltem felizes para seus lares, escondidos lá nas entranhas dos bairros sem infraestrutura nenhuma. Negócio é ligar a TV e esperar a vida passar, com a boca escancarada, cheia de dentes.

Lembram da juventude engajada da União Santanense de Estudantes, nos anos 80 ?  Hoje a “juventude” – pelo menos a da Rua dos Andradas para cá – parece não ter mais por que lutar. Espaço público não há, ou se há está abandonado a inércia, e os amagos de caos ecológico chegam junto com as promessas de uma terceira guerra mundial.

 Estamos vivendo a falência de um modelo de representatividade política, onde quem tem míseros 5 mil reais a mais do que o concorrente consegue ascender ao posto de “vereador”, seja lá o que isso possa agregar de alento a um futuro coletivo melhor. Que o digam os votos brancos e nulos.

As propostas dos progressistas estão em baixa, o sonho está em baixa, a esperança está em baixa. Quando falo em progressismo, me refiro a todos aqueles que somaram forças ao lado dos que buscam um papel tutelar do estado sobre a sociedade, desde a promoção da saúde mas também da educação e cultura, da abertura de espaços para a dissonância. Mas quando se falou com seriedade em Cultura na recente campanha municipal ?

Recentemente tivemos de submeter parte substancial de nossos acervos históricos ao Museu da cidade vizinha, e depois de engolir a seco, tivemos de admitir que essa foi a melhor opção. O contrário seria o roubo, o descaso, a perda, algo que já conhecemos e que já vimos como funciona.

Temos instituições como a Biblioteca Municipal ou o Museu David Canabarro, entre tantos aparelhos de cultura, que afora estarem totalmente descaracterizados com o passar dos anos recentes  – quando reabertas, de tanto em tanto – são apenas fantoches maquiados, instituições esvaziadas, sem pessoas comprometidas ou ao menos com uma formação recomendada para gerir tais espaços. E assim vamos trocando cargos por favores políticos, eternamente, a despeito do bem comum e da promessa de um futuro. E infelizmente, isso não é mais uma questão apenas de eleições.

Na falta de um espaço de coletividade, incitada pelo poder público, sobra o espaço religioso, importante sem dúvida, porém nem sempre afastado de interesses manipuláveis.

Por outro lado, Rivera também vive décadas de um governo conservador e que todos sabemos de que maneira cresceu e se consolidou. Mas resiste ali um apelo republicano, que em última instância não permite que tudo desabe, como aconteceu do outro lado da “linha”.

Do lado lusitano da moeda, sobraram burocratas de partidos políticos enfraquecidos, tristes políticos “profissionais”, ex mandatários que se julgavam os reis da Pérsia, candidatos que sabem apenas espalhar paternalismo em época de eleições, como se o “pobre” fosse um burro irrecuperável. 

Frente a isso, o “novo” vem com tudo e com razão – como já prenunciava o trovador de Porto Alegre. Frente a isso, sobra o “novo” travestido de libertário, de “sem ideologia”, de tudo o que sabemos ser apenas nuvem de fumaça, bastante espessa é claro, alavancada pelas milícias digitais dos novos espelhinhos, que os nativos adoram.

E assim seguimos, bebendo nas águas castelhanas, nos alimentando da vanguarda dos hermanos, do Candombe, enquanto o samba é sistematicamente colocado em segundo plano. Restam os espaços planejados desde allá. Enquanto isso, no acampamento imperial, convivemos com o sono, a inércia, o desmando. E a falta de perspectivas.



sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

 

       Lutas operárias na fronteira:  as mulheres na linha de frente 



A prisão de Hélio Santana Alves após se recuperar do tiro que levou no confronto do Parque Internacional, e seu encaminhamento ao cárcere em Montevidéu, foi um fator determinante para salvar a sua vida. Se fosse entregue à polícia brasileira, ninguém poderia prever os desdobramentos que poderiam ocorrer, dado a tensão extrema daqueles dias e a caça deliberada aos militantes comunistas. O que poucos sabem é que por trás de toda a operação de salvamento de Hélio esteve presente sua esposa, Celina Perez (foto), que como parte expressiva das mulheres militantes foi invisibilizada da história “oficial”, seja do partido ou das esquerdas em geral. Em uma sociedade estruturalmente machista, a atuação das mulheres na política, ou mesmo sua mera influência, conforme assinalou a historiadora Michelle Perrot, é nada menos que temida:

 

O lugar das mulheres no espaço público sempre foi problemático, pelo menos no mundo ocidental, o qual, desde a Grécia antiga, pensa mais energicamente a cidadania e constrói a política como o coração da decisão e do poder. (...) Prende-se à percepção da mulher uma ideia de desordem. Selvagem, instintiva, mais sensível do que racional, ela incomoda e ameaça. (...) Elas inquietam os organizadores das cidades, que veem nas multidões onde elas estão presentes, o supremo perigo.[1]

 

Dentro de um contexto de invisibilidade trafegaram boa parte das militantes fronteiriças, relegadas a apêndices das narrativas e culturalmente enquadradas na camisa de força patriarcal que as obrigava a conciliar a atuação política nos seus diversos níveis ao suprimento da vida doméstica e aos deveres do privado, espaço a elas relegado. No momento da prisão de Hélio, Celina teve de agir rapidamente para que o companheiro não fosse entregue aos algozes. Sérgio Alves, filho do casal, rememora:

 

A minha mãe, no mesmo dia em que meu pai ficou baleado no Uruguai procurou um deputado que era de Rivera, chamado Maximiliano Luz, e esse homem constatou que a prisão de meu pai não estava registrada em lugar algum. Então minha mãe liga para um advogado do partido chamado Garcia Moyano. E ele liga para cá e a polícia diz que não havia preso nenhum. Quer dizer, estavam armando para passar ele para o outro lado, e iam matar. Então esse advogado disse, não, há um preso político aí chamado fulano de tal e amanhã eu estarei aí para defendê-lo. E talvez isso tenha feito o comissário não ter entregue ele.[2]

 

Para Celina Perez, a parceria com o companheiro e o esforço para a sustentação dos filhos sempre foi a tônica de uma vida de lutas. Quando da prisão de Hélio, teve de manter a um alto custo pessoal a pequena engarrafadora de bebidas que o casal possuía no bairro da Tabatinga. A camioneta usada para as entregas fora sumariamente confiscada pela polícia e jamais retornou. Celina teve de trancafiar em um porão alguns barris de anis, que usou para fabricar novas bebidas e continuar o negócio na ausência do marido. Nos anos que viriam a luta não seria menos intensa. Pouco mais de duas décadas depois, Celina veria o filho Sérgio ser preso e torturado durante a ditadura uruguaia. Frente ao poder avassalador dos novos tiranos, reuniu um grupo de mulheres que enfrentava o dia a dia inquisitorial dos militares e acompanhava de perto os deslocamentos para outras cidades e quartéis dos filhos prisioneiros. Essa luta foi de fundamental importância para que uma série de militantes simplesmente não desaparecessem, como ocorreu com outras duas centenas de pessoas, além de mais de 100 mortos nas prisões uruguaias.

Assim como Celina Perez, a presença de mulheres fronteiriças como Gecy Rodrigues Soares, filha de Santos Soares e esposa de Francisco Fagundes Lima, de atuação intensa no acolhimento de exilados brasileiros durante a ditadura iniciada em 1964, precisam ser melhor iluminadas em pesquisas futuras. O que dizer da relevância de uma mulher como Maria Rodríguez, esposa de Santos Soares? Aguarda-se uma produção historiográfica que se debruce com o tempo necessário na fundamental atuação dessas mulheres, assim como outras citadas nesta pesquisa e que dentro de seus espaços locais dialogavam, de forma consciente ou não, com as ideias de ativistas fundamentais como Leolinda de Figueiredo Daltro, Olga Benário, Bertha Lutz, Lila Ripoll, entra tantas outras.

As ações mais visibilizadas das ativistas ligadas de alguma maneira ao PCB podemos encontrar em registros esparsos dos jornais do partido e, especialmente, nos relatos da Memória. A trajetória de Placelina Santana, por exemplo, esposa do líder Jovelino Santana, nos chega através do olhar de sua filha Olga. Conforme ela nos mostra, a casa da família, no bairro Industrial, era ponto de encontro e local de reuniões onde compareciam Renée Canabarro, Teresa Nequesauert, Francelina Cabeda, Virginia Apoitia. Olga Santana recorda-se que nesses momentos as mulheres reuniam-se à parte dos homens, e os assuntos discutidos giravam em torno das ações partidárias para arrecadação de fundos, mesmo que nem sempre a política fosse a tônica:

 

Elas vinham para cá, faziam chazinho, cafezinho, e conversavam, mas acredito que elas não conversavam assunto de política. Tinham umas que eram bem politizadas. Diferente da minha mãe, que meu pai sempre foi muito machista nesse sentido, então mulher não se mete em política. Mas as outras mulheres falavam e minha mãe assimilava muito bem. E faziam chás dançantes, para recolher algum dinheiro para o partido. Então elas eram encarregadas dessa parte social, para auferir algum dinheiro, para que eles pudessem manter o jornalzinho, a compra de livros... Na outra sala ficavam os homens, meu pai, o Solon, o Heron...[3]

 

Renée e Teresa Nequesauert, esposa de Solon Pereira Neto, eram das mais atuantes na liderança da ala feminina do partido. Na ocasião da chacina, Heron foi detido ao tentar interceder como advogado, denunciando a arbitrariedade e inconstitucionalidade da prisão de Solon. O ambiente exalava a tensão dos recentes assassinatos e Renée organizou a ala feminina, reuniu as viúvas, e se encaminhou ao quartel onde estavam detidos Solon e Heron, exigindo a soltura, falando em nome das famílias dos mortos e em desagravo ao crime. Foram recebidas pelo comandante Ciro de Abreu. Marlova Canabarro recorda de sua mãe narrar o áspero diálogo que manteve com o militar: “O Ciro de Abreu disse, ‘É, foram vocês que inventaram essa tal democracia, no que minha mãe retrucou, general, democracia não se inventa!”. Para Marlova, embora os militantes e simpatizantes do partido muitas vezes tivessem origens sociais distintas, pelo menos na sua casa os grupos não eram exclusivos, separados entre “intelectuais de um lado e operários de outro”. Ela acredita que para Renée e Heron não havia a distinção, muito embora circulassem também pelos meios pequeno-burgueses e de fazendeiros mais abastados.

 

Lá em casa desfilava gente, não tinha isso... e nas reuniões ia todo mundo. A mãe era uma pessoa que transitava muito dentro do partido e era extremamente coerente. Ela foi responsável pelos primeiros filmes italianos que meus amigos viram no cinema, e depois iam lá para casa discutir, tudo por influência da minha mãe. Ser comunista e participar de uma sociedade pequeno burguesa era complicado também, mas nunca houve... eu fui debutante, fui tudo... bailes... Tinha descriminação na escola primária... do tipo, minha mãe disse que teu pai é comunista.[4]

 

Mariana de Rossi Venturini, ao analisar as conferências dos comunistas de 1956 e 2007 que trataram da questão da mulher, aborda a tradição do feminismo marxista e seus desdobramentos entre os militantes brasileiros. Desde a elaboração de Engels e Marx, segundo a qual somente em uma sociedade sem divisão social e sexual do trabalho seria possível a liberação dos trabalhadores e da exploração de classe, a questão rondava as pautas da esquerda. Conforme a socióloga,

 

Os comunistas passaram décadas negando e criticando o “feminismo”, mesmo nos momentos em que eles próprios defendiam reinvindicações específicas das mulheres. A ideia de “feminismo” se confundia com a ideia de “feminismo liberal” ou “feminismo burguês” e, só muitas décadas mais tarde, mais precisamente a partir da década de 1970 em diante, com o avanço dos debates entre feministas de esquerda, é que se faria a distinção entre as correntes liberal e socialista e o termo “feminismo” passa a designar também a luta pela emancipação das mulheres no âmbito das esquerdas partidárias, incluindo muitos partidos comunistas.[5]

 

Com o final do Estado Novo, o movimento das mulheres comunistas ganha um novo impulso, amparado no fortalecimento das organizações de base e a criação de comitês populares de mulheres em todo o país. Em maio de 1949, realiza-se, no Rio de Janeiro a 1ª Conferência Nacional das Mulheres, onde foram debatidos os caminhos para se assegurar mais direitos para as mulheres brasileiras. A conferência denunciava fortemente a situação de fome e miséria do povo, contudo, apontava que era ainda mais penosa no país a situação das mulheres. Conforme Venturini, a tomada de consciência pelas mulheres de que sofriam duplamente uma exploração social foi gradual e consistente, e “ainda que não houvesse clareza nas motivações ou mecanismos pelos quais isso ocorria, já era clara a percepção de que eram mais atingidas pela pobreza, exploração, falta de liberdades e de direitos”.[6]

Nesse período, a imprensa comunista celebrava a participação feminina cada vez maior nas ações do partido, especialmente nas campanhas pela Paz, contra as armas nucleares e contra o envio de tropas brasileiras para a Guerra da Coréia. O Voz Operária registrava a batalha pela maior visibilidade das trabalhadoras e a extrema dificuldade que as mulheres passavam no ambiente de fábrica. No Armour, a mão de obra majoritariamente feminina estava concentrada nos setores da Picada, Latoaria e Rotulagem. A situação da mulher na fábrica é enfocada pela ativista feminista e colaboradora do Voz Operária, Ginia Machline, em uma edição de agosto de 1949. A nota faz um chamamento à participação da mulher na luta pela paz e contra a iminente guerra imperialista e reforça a situação dos frigoríficos gaúchos e especialmente o Armour como exploradores contumazes da mão de obra feminina.

 

Um exemplo dessa situação da mulher trabalhadora é dado pelas operárias dos frigoríficos do Rio Grande do Sul, que ganham salários na base de Cr$ 150,00, 230,00 e 420,00 – que entrando 5 minutos atrasadas não ganham o descanso semanal, que não tem assistência médica e hospitalar, que não tem creches nos locais de trabalho para deixar seus filhos com outras crianças (prejudicando-as em seus brinquedos infantis, pois tem que cuidar de seus irmãozinhos) isso quando não tem de deixá-las fechadas em casa, sozinhas, outras entregues a vizinhos, mediante pagamento, no que dispende quase todo o salário. São obrigadas a levar comida para o trabalho, pois os horários são apertados, com uma hora para o almoço, incluindo (...) comida péssima e intragável por preços pouco acessíveis, os “gringos” exigem pagamento à vista, pois os operários e operárias, além de serem vilmente explorados, não merecem créditos dos americanos fazedores de guerra.[7]

 

A denúncia estampada no jornal não poupa o governo Dutra, um inimigo declarado e a ser combatido, pois estaria levando o país à bancarrota, através de acordos com os “traficantes da guerra”, Estados Unidos e Inglaterra. A exploração das mulheres nos frigoríficos Armour, Anglo e Swift, aponta a reportagem, “é medonha”. De acordo com os historiadores Augusto Buonicore e Fernando Garcia, a organização feminina entre os comunistas teve um grande impulso com a fundação do jornal Momento Feminino, em julho de 1947, sob a direção de Arcelina Mochel. Nesse período o jornal “tornou-se um instrumento agregador e organizador das mulheres comunistas e progressistas brasileiras (...) impulsionou a criação de comitês femininos em bairros e sindicatos. Num artigo no Momento Feminino fala-se na existência de 43 núcleos funcionando (...) O resultado de todo esse trabalho foi a criação da Federação de Mulheres do Brasil (FMB) em 1949”.[8] A entidade congregou organizações femininas de 11 estados e foi responsável pelas pressões que resultaram na criação da Sunab (Superintendência Nacional de Abastecimento), durante o governo Vargas. Além das campanhas pelo Petróleo, contra as armas atômicas e o envio de soldados brasileiros para a guerra da Coréia, as mulheres organizadas também foram fundamentais para as vitórias obtidas na greve dos 300 mil, que sacudiu a capital paulista entre março e abril de 1953. No entanto, a organização das mulheres, especialmente ligadas ao PCB, teve uma retração a partir do final dos anos 1950 e a crise interna do partido. O momento de auge que iniciou com o final do Estado Novo e se consolidou na década seguinte não se repetiria, sendo fortemente abalado com a imposição de uma nova ditadura em 1964.


*  Fragmento do livro "No portão da fábrica - uma história social da fronteira (1945-1955)" 

 de Marlon Aseff 



[1] PERROT, Michelle. Mulheres Públicas. São Paulo: Unesp, 1998, p. 8-9.

[2] Sérgio Alves. Entrevista ao autor. Santana do Livramento, 25 de agosto de 2019.

[3] Olga Santana, entrevista citada.

[4] Marlova Canabarro, entrevista citada.

[5] VENTURINI, Mariana de Rossi. Comunistas do Brasil e a emancipação da mulher: as conferências partidárias de 1956 e 2007. 2018. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Unicamp, 2019, p. 12, 15, 35.

[6]Idem, p. 53.

[7] “A Mulher Operária na Luta pela Paz” – Ginia Machline. Voz Operária, Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1949, p. 3.

[8] BUONICORE, A.; FARIA, F. G. As mulheres e os noventa anos do comunismo no Brasil. Portal do Centro de Memória Sindical, 2022. Disponível em: https://memoriasindical.com.br/formacao-e-debate/as-mulheres-e-os-noventa-anos-do-comunismo-no-brasil/.